sábado, 24 de março de 2012

Impressões (ir)relevantes de uma visita rápida


“Sou eu, assimétrico, artesão, anterior
  na infância, no inferno.” (...)
                                    Herberto Helder 
        
Keytielle Mendonça com a série: “Os punhos de Leonello, ou qualquer que seja homem” (2012) traz-nos uma delicada poética áspera. Bem como nos diz Herberto Helder, nos versos da epígrafe, uma alvura de infância mas permeada pelo o que há de inferno na vida conjugada de um adulto. Sobressaiu-se, embora o título, a atenção que tomou-me as aparições das mãos. Elas, construtoras e destruidoras, que retêm e que repartem, ou como bem coloca Drummond no poema homônimo “A mão cresce e pinta/ o que não é para ser pintado mas sofrido.” (...). Em um dos tecidos bordados, que lembraram-me alguns trabalhos de Leonilson, os dizeres “um homem sofre/ porque tudo faz/ a partir dos Punhos”, subitamente remeteu-me a divagar por uma das peças de Nelson Rodrigues, “A Senhora dos Afogados” (1947), que traz uma imagem tortuosamente poética e bela, bela como a mais horrenda beleza que imprimiria um Edgar Allan Poe – o amor de Moema por seu pai, Misael, sentimento fadado ao sofrimento e que tem como espelho do impossível, como prolongamento eterno do cordão umbilical, a semelhança das mãos e dos gestos delas com as de sua mãe, D. Eduarda. Esta relação extrema do que os gestos preservam, como hieróglifos a espera de um leitor que os desvendem, na peça e nas obras de Mendonça, vibram. Mas que se não o encontra, revela-se com uma fúria suprema, incontida na delicadeza estética. Poderia eu erroneamente creditar maior sofrimento ao homem, se baseado na metáfora que Mendonça utilizou; e, dessa forma, parecer até mais vil tal imagem, a dos punhos? Não consigo afastar a ideia de que os punhos apenas sustentam as intenções que as mãos executam, sejam elas, por homens ou mulheres, as mais atrozes ou, de leveza, puras. Dito isto, recupero o que Italo Calvino em “Seis propostas para o próximo milênio”, no capítulo que dedica à Leveza, nos diz em uma de suas passagens acerca do romance “A insustentável leveza do ser”, de  Milan Kundera:

“O romance nos mostra como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentável. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam da condenação.” (p. 19, Tradução de Ivo Barroso, Companhia das Letras, 1990).
Eis que assim, leve mas cortante como uma lâmina afiada se construiu em mim, inúmeros significados, que por delongas angustiantes não ousaria retardar o recesso de minhas inquietudes. Inquietudes e divagações hiperbolizadas com a exposição de duas outras obras do amigo e artista Sérgio Nunes.

Sua obra intitulada Íntimo (2011), gavetas de um mesmo padrão mas trabalhando de forma diferente entre si a profundidade na concepção de como foram fixadas direto na parede, desnudas, sem nada dentro e ao mesmo tempo abarcando tudo. O que é o vazio desmistificado? A íntima sensação de se adentrar gavetas onde se encerravam objetos, ou simples memórias. Agora vestindo a pele nua da parede, elas, como escamas, provocantes, querendo chamar as nossas mãos para preenchê-las, deslocá-las na intimidade de seu vazio-pleno de parede, que nada encerra, só projeta, no oco delírio que o vazio revela. Em consonância, ao lado, a obra sem título (2011), matematicamente calculada: pedaços do que seria um tapete de madeira, recortados e orquestrados a compor um desenho em contraponto ao branco da parede, sempre partindo de um desenho maior de sete peças, unido a outro menor de 3 peças, repetida a série até um total de 47 fragmentos. E por mais que possam suscitar inúmeras leituras, ficou-me a imagem do som que se propaga. Ondas sonoras, o oco, eco, os passos que horizontalizaram-se e que nada mais ressoam. E é música. Um passeio pelo espaço, uma monotonia que chega a ser ruidosa, trágica como, cito meus versos...
 

Andar e ter
            A sensação

Da alma escapando
Passo a passo


Até o corpo ser
                        Senão


O oco do próprio
                        Canto


Alex Dias
Ribeirão Preto, 23/03/2012, 00h17
 
Foto da esquerda: Keytielle Mendonça, da série "Os punhos de Leonello, ou qualquer que seja homem" (2012)
Foto da direita: Sérgio Nunes, obras: "Sem título" e "Íntimo" (ambas de 2011)

 
Serviço:
Artistas selecionados no Programa Exposições 2012
MARP - Museu de Arte de Ribeirão Preto Pedro Manuel-Gismondi
Unidade Centro de Convenções Ribeirão Preto

Rua Bernardino de Campos, 999 - Ribeirão Preto - SP
Permanência até 20/04/2012
Informações no MARP: (016) 3635-2421