Hoje, recebo com
muito pesar a notícia do falecimento de Ernesto Paulelli, que ficou muito
conhecido quando Adoniran Barbosa, o pai do samba paulista, lançou sua
composição “Samba do Arnesto”, em
sua homenagem. Eu pude conhecê-lo
pessoalmente e num desses encontros, de uma conversa que tivemos em sua casa e
que se estendeu para um táxi que tomamos juntos, escrevi o texto que reproduzo
abaixo.
Fica a saudade! Vá
com Deus, querido!
São Paulo, 04 de abril de 2009
“QUEM SABE DE MIM É
O MEU VIOLÃO... (CORAÇÃO)”
Adoniran Barbosa. Foto "autor desconhecido" |
Na tarde de 04 de
abril de 2009, o Sarau Chama Poética homenageou o cantor e compositor Adoniran
Barbosa, ou o João Rubinato, nascido em 06 de agosto de 1910 e filho de imigrantes
italianos. O tema do sarau já anunciava o grande sucesso, afinal, Adoniran
Barbosa é um dos raros compositores que atravessam gerações devido à
importância e qualidade de sua obra.
No evento, apresentaram-se
os músicos Irineu de Palmira, Neno Miranda, Gabriel de Almeida Prado, e ainda
tivemos algumas participações especiais como Lula Barbosa e Nando Távora. As
declamações ficaram por conta de Fernanda de Almeida Prado e da atriz Fernanda
Conrado.
Eu tive o grande
privilégio de interpretar Adoniran Barbosa. Mas, me desculpe a imagem saudosa e
sempre viva de Adoniran, quem roubou a cena no dia de hoje foi um simpaticíssimo
senhor chamado Ernesto Paulelli. Para quem não o conhece, ele tem 94 anos e foi
“imortalizado” na canção de Adoniran, feita em sua homenagem, o “Samba do
Arnesto”.
Ernesto Paulelli e Alex Dias - Museu da Língua Portuguesa, 2009 Foto Maria Rita Aguiar |
Eu tive a honra de ir
buscá-lo em sua casa e o compromisso firmado era que eu chegasse lá às 13h45.
Desde 12h45 eu tentava falar na central do táxi que viria me pegar e me levaria
até a casa de Ernesto, que fica na Mooca, não mais no Brás, como está na letra
de Adoniran. Depois de muito custo, consegui. E somente às 13h15 o taxi chegou
em minha casa, no bairro Paraíso. Eu estava, nessa altura do campeonato, bem
apreensivo com o horário.
Com um trânsito que
nem parecia o de São Paulo, fluindo, cheguei às 13h41 em frente à casa de
Ernesto, toquei a campainha e fui convidado pelo seu genro a entrar. Quando já estava
na sala, vi um senhor descendo as escadas. Era o Ernesto. A emoção daquele
momento histórico me tocou profundamente. E de repente, o silêncio foi quebrado
pela sua voz rouca, mas muito vivaz: “Quem é esse rapaz?”, ele perguntou,
parando no meio da escada. E a sua filha, Valéria, respondeu: “é o ator, papai,
que fará o Adoniran e veio nos buscar para irmos ao Museu” (Museu da Língua
Portuguesa).
Ernesto puxou a
manga de seu casaco para observar a hora no relógio e, conferindo, disse:
“13h45, muito pontual você. Eu gosto, pois eu nunca me atrasei nessa vida. Eu
apostava corrida com os bondes, se fosse preciso, para chegar no horário.”
Desceu os últimos lances da escada, me cumprimentou e logo perguntou se já
poderíamos ir, demonstrando que ele, de fato, estava ansioso com a homenagem
que lhe prestaríamos.
Fernanda de Almeida Prado, Paulo Vanzolini, Ernesto Paulelli e Alex Dias Casa das Rosas, 2009 - Foto Maria Rita Aguiar |
Ainda no táxi,
durante o percurso de sua casa até o Museu da Língua Portuguesa, eu me deleitei
com o aquele simpático novo amigo, generoso e muito lúcido na hora de me
revelar as suas histórias de amizade com o Adoniran e; também de, sem reservas,
contar-me histórias de sua própria vida. Com certeza este homem merece ser
lembrado, não apenas através do “Samba do Arnesto”, mas pela sua própria
história de vida. Imaginem o que é uma pessoa aos seus sessenta anos se formar
no curso Direito e advogar por mais trinta anos, parando apenas por conta de um
AVC (Acidente Vascular Cerebral). Hoje, contou-me, estuda música, matemática e
gramática, todos os dias!
Mas, como homem
predestinado a brilhar que é, quando convidado a sentar-se com outros artistas,
que estavam em uma mesa que reproduzia a boemia de uma “conversa de botequim” para
que pudéssemos apresentá-lo melhor ao público e o deixar contar algumas de
suas histórias, Ernesto Paulelli, ou Arnesto na ocasião, roubou a cena,
declamando um trecho da música de Adoniran em sua homenagem e cantando,
incansavelmente, praticamente todas as outras músicas apresentadas no evento,
acompanhando os demais músicos.
Era visível a
satisfação nos olhos de Ernesto e a empatia, a catarse, que ele causara no
público, conquistando a todos com o seu jeito simples e preciso em se
expressar.
Mais do que um
simples homenageado, seja por Adoniran ou tantos outros artistas que o fizeram
depois do mestre do samba, ali mostrou-se, a quem pôde ver, um grande artista
cujos vinte oito anos como músico em São Paulo deram-lhe o talento de
cativar a todos.
Alex Dias interpretando Adoniran Barbosa - Museu da Língua Portuguesa, 2009 Foto Maria Rita Aguiar |
Este sarau tocou o
público, foi um encontro mágico com parte de nossa história viva da música
popular brasileira. E para Ernesto, que conviveu com Adoniran e conhece as suas
canções como ninguém, ele pôde apreciar como jovens artistas, como os músicos
Neno Miranda e Gabriel de Almeida Prado, interpretaram com uma roupagem nova as canções de Adoniran. O que prova que a boa música perdura e
sempre se renova através dos tempos. Ernesto Paulelli recebeu do músico Nando
Távora uma nova canção em sua homenagem e, enquanto o Nando a tocava, apertou o
meu braço e disse: “olha Adoniran, eu queria saber cantar essa
letra toda, mas por enquanto eu só arrisco o refrão”.
Agora, se os fãs de
Adoniran sentem falta de que eu fale dele, não é preciso muito. Não fosse ele,
esse dia especial não existiria. E toda a festa que fizemos em sua homenagem
tornou-se, na verdade, um presente para mim, e creio que para todos àqueles que
estiveram presentes na tarde de hoje, no Museu da Língua Portuguesa. Adoniran,
o grande intelectual do povo, da língua falada e entendida pelo povo, do
simples ao mais erudito. Adoniran, mais do que um dos maiores compositores da
MPB, um lapidador das preciosidades da realidade paulistana. Eu te saúdo e o
deixo como um pavio acesso do lampião de minha alma, povoando o meu coração de
samba. “Quem sabe de mim é o meu violão… (coração)”.
Alex Dias
Ator, poeta, dramaturgo e produtor