por
Alex Dias
Sugiro
que o leitor comece a sua viagem por Tetralogia
da peste [+ dois tempos, uma cidade][1],
de Antonio Martinelli, ao som da tetralogia[2] de Wagner, Der Ring des Nibelungen, com o vinil
achado no lixão e a vitrola restaurada através de sucatas ou qualquer outra
fonte à disposição [“LUXO / LIXO”, Augusto de Campos][3]. Não que seja fundamental,
complementar, essencial. Mas porque a obra é um labirinto de possíveis
encontros, referências, geografias, num misto de lirismo e aspereza. A cidade é
queda sobre os homens, o território de Joãos Josés, filhos de tantas Carolinas
Marias[4], sonâmbulos atrás de suas
máscaras sociais, despertos para a peste do vírus – que humaniza a fórceps o
verbo – distanciando-os uns dos outros. Um drama crescente como o vazio das
ruas ou o desejo de insubmissão às regras, da necessidade de contato. A nossa
necessidade de afeto, entremeada por uma cidade devastada, vista da janela.
Cidade invisível, cidades. Casas. Corpos. A humanidade perde importância nos
discursos dos mercados. Homens,
mulheres, crianças, invisíveis como “a trágica transparência do vírus[5]”.
Mas
nem tudo é invisibilidade. Há os que se lançam sobre as dores e horrores de seu
tempo, sobre a urgência da vida que pulsa latente nos punhos da arte.
As
quatro obras que compõe essa Tetralogia
da peste de Martinelli, “Brasilândia, Zona Norte”, “Calvário”, “Manaós” e “O
Eco de Bérgamo”, são seguidas de um quinto ato, “Dois tempos, uma cidade”. Se
coloco-as como atos, é mais por uma
alusão ao drama humano, da vida como palco do espetáculo da vida, onde a morte
também traz um vasto repertório de grande encenadora.
A
voz que abre a trama, Brasilândia,
primeiro ato, parece de “a mulher do fim do mundo”[6] embalando um jovem João José
por caminhos de todos e de nenhuns. As trilhas possíveis são muitas, desligue
súbito o “clássico”, coloque o samba de roda, o batuque dos terreiros, o funk,
o rap, o pancadão. Esqueça tudo isso. Permita-se o silêncio.
[o
tempo do desespero
é
o agora!][7]
As
batidas, mesmo silenciosas, serão tamanhas, como os assaltos do horror nos
olhos das crianças descalças emanando luz além dos campos de terra e da
violência da fome. A fome, essa peste agora remaquiada por novas máscaras. Fome
de tudo, que faz o pobre abrir o peito ao medo e dar-se ao vírus num dos maiores
banquetes de esquecidos pelo desgoverno, por tantos patrões. Território, Brasilândia,
como tantos, cuja sina se reescreve por outras estatísticas:
[o
medo segue sobrevoando
com
os urubus
sobre
o céu da Brasilândia!]
Agora,
João
é
maior o número de mortos,
mais
peste,
menos
bala.[8]
Paisagem
transformada pela força que se sente e não se vê. Uma crença às avessas, do que
é, mas que tantos teimam em não crer. Enquanto a morte não se mostra próxima
(para alguns, isto é, dentro de casa), muitos olhos se cegam para as inúmeras
covas.
Parece
haver gente que não sente uma angustia que deveria tocar a todos. Cenas
marcantes de vários povos. Povos nossos, mestiços. Peste que escancara as
nossas desigualdades, os nossos racismos, nossa des-solidariedade. A peste chama-nos
à revolta, aqui
Será
preciso a Brasilândia
atear
fogo no Brasil?[9]
ou em Guayaquil
a
cidade que abandonou
seus
doentes,
em
cima das macas,
seus
mortos,
em
cima das mesas.
[carnes
para urubus
nas
praças públicas][10]
Sobre a tragédia de Guayaquil descortina-se o segundo
ato, o Calvário. A suspensão do
tempo atravessa os fantasmas de Guayaquil, mórbidos transeuntes a procura de
salvação em “nossa Gólgota / latino-americana”[11] em que
todos
rezam em novena
pelo
reconhecimento dos mortos.[12]
As
horas sombrias do afastamento mais desumano. A desoladora vivência dos que
ficam com lembranças fragmentadas das últimas horas, dos últimos encontros, dos
últimos toques, palavras, carinhos. Há um desespero implodido nos peitos, nessa
secura que o tempo arrasta como uma possível normalização social para o “novo
agora”.
Com
medo, os vivos de Guayaquil:
não
tocam, não acariciam,
não
beijam,
só
temem o vírus vivo
nos
corpos mortos de Guayaquil.[13]
Nossa fragilidade exposta ao vírus, aos vermes, aos des-umanos
inescrupulosos que fazem disso chacota, lucro, negociatas nos porões e salões
“nobres”. Fome e Peste se entranham nas vidas que esses olhos de abutres
desprezam. Ou, prezam à morte, seletiva, injuriosa. Fala-se de Guayaquil? Fala-se
daqui, Brasil.
No momento em que nosso desgoverno busca burlar
estatísticas, omitir a quantidade de mortos, varrê-los da nossa pandemia (i-men-sa-men-te
sub-no-ti-fi-ca-da) para as contas de outras doenças, Manaós [Mãe dos Deuses], terceiro
ato, revela o espírito vivo, o canto guerreiro, pelo sangue de nosso povo
primeiro que habita e resiste no coração da floresta:
cidade
incrustada na floresta,
ah,
cidade e estado criados
pela
destruição
deslocamento
de
aldeamentos e vilas,
morre
negro, tuxaua, caboclo,
xamã,
branco, seringueiro,
pardo,
morre índio.
cidade
e país continuum de guerras
cidade
país emburacados
no
abre covas populacho.[14]
Não nos esqueçamos, hoje as ruas estão tomadas de
manifestantes. A urgência por justiça, por mudança, lança o povo às ruas, como
a fome arrasta para elas os trabalhadores. Massa anônima lutando contra o
racismo em todo o mundo, tecendo redes para além das redes sociais. Deitada na rua em frente ao arranha-céu de onde um
anjo negro saltou para o colo de sua mãe. Tantas vidas negras em queda em nosso
país e no mundo. E, de esquiva, tanta gente nas ruas. Moribundos espíritos
vagando pela reabertura dos serviços e do comércio. Reabertura fora de hora, em
tantos lugares de nosso imenso território, onde os números de mortos e
infectados só crescem, me faz engrossar o grito: “Eu sonho uma nova / Cabanagem!”[15].
Não há disfarce. Não adianta tentar sufocar o luto do
povo, a diferença no trato. Ainda assim, mesmo com tantas famílias destruídas,
lutamos, em busca de uma nova sociedade mais humanizada, mais solidária. Há de
chegar a vez em que a Cultura e a Educação farão em nossa pátria a verdadeira Revolução.
O espelho só diz o que envelhece em nós. Cultura e Educação, o que nos
rejuvenesce e fortalece. Porém, os tempos são de sombras. Enquanto estivermos nas
mãos destes cujos projetos são projéteis mirando o coração da nação,
disfarçados de messias, com suas palavras vazias de compaixão, a pandemia passa
a ser quase inofensiva. Quem viu o valor da fatura que já estamos rachando? Quem
sabe o prazo desse crediário em que penhoramos a nossa chance de futuro? De um
futuro que de fato constrói uma nação, uma identidade, um povo, uma Cabanagem.
Por isso
Narremos,
cantemos
essa história
Contemos
os nossos mortos,
os
mortos de Manaós, um a um.
Em
números e nomes, em etnias.[16]
Contemos
todos os mortos e creditemos as suas mortes sobre os ombros dos que agem com
descaso, aliados da peste. Não devemos definhar por esta subclasse de humanos
que não zela por seu povo. Nosso povo, tão oprimido, que replica muitas vezes
um discurso sem sentido, contra si mesmo. Quem lhe tirou a chance de um livro,
de uma visita ao parque, o tempo de um filme, de um espetáculo, do lazer, da
arte, do esporte? Quem lhe tirou a chance de, em museus, saber de outras
culturas? Da sua própria, de seus antepassados? Quem impregnou nosso povo de
suor, cansaço, e fez seu corpo [escravo] de horas incontáveis de trabalho? Quem
descansa protegido [ócio pago] enquanto a massa alimenta de produtos as
prateleiras dos mercados? Nosso povo não sabe de ócio. Sabe de ossos.
Antes
do vírus, os museus, em sua grande maioria, já eram pouco visitados. A peste
apenas cerrou suas portas, como tantas outras. Cidades onde a arte e a cultura
de seus e outros povos eram mais frequentadas, também foram desoladas. Claro
que sempre há os espaços que fogem à regra, incluindo entre eles, alguns que se
incendiaram por descuido e descaso, e seguem fechados.
Bérgamo,
quarto ato. Quantos brasileiros a conheceram? Quantos souberam de sua
existência pela cena nos noticiários de um comboio de caminhões do exército
levando os corpos mortos de seus moradores para serem incinerados em outras
cidades. A peste ainda não havia batido tão fortemente em nosso país. Bérgamo,
Itália. Espanha. Outros mais. Brasil. Hoje, com mui+to + mais + mor+tos. E
tantos ainda, que nem se sabem, condenados. Alguns pedem soldados em nossas
ruas, intervenção a nossa surrada liberdade. Lembremos de Bérgamo, estamos nos
aproximando deste estado, onde soldados em seus carros são necessários para
levar os mortos. Exagero! Bradarão alguns, uniformizados. Não nos esqueçamos,
nosso vasto território tem realidades e horizontes que nossas telas
(televisões, computadores, celulares) não alcançam. Brasis. Onde a salvação
para imensa maioria da população ainda passa pela necessidade de isolamento e
pelo SUS (Sistema Único de Sáude), que sobrevive público, mas sucateado nas
desigualdades dos Brasis. Necessário. O coro na rua que ainda respira, deve
entoar esse canto de urgência e em defesa: “SUS!”.
Não
nos esqueçamos
[hoje,
ouço
a marcha fúnebre]
nem
todo aquele jornal
–
“Eco de Bérgamo” –
depois
de folheado
à
exaustão
–
surrado batido molhado
seco
deformado enrugado –
seria
suficiente
pra
embrulhar meu coração.[17]
Mas nem tudo, nesse mar de incertezas, é trágico. A
reinvenção do humano é um drama necessário. Saímos do chão de nossas toscas
certezas. Achávamos ver os próximos. Agora, distantes,
de quantos lembramos? Achávamos olharmo-nos. Quantos agora sustentam a convivência
consigo mesmos? Mas de nossas janelas, o céu ficou mais límpido. Em parte,
porque antes não o olhávamos, em parte porque o deixamos de poluir, com a breve
estagnação que demos as nossas máquinas. “Não somos máquinas”[18].
Dois tempos, uma
cidade. Último ato.
Se
preciso,
dê
o seu coração,
divida
com os de fora,
e
comungue
nas
mãos da esperança.[19]
Não
sem sofrimento, temos a chance de, vencida essa peste, levarmos a vida ao
encontro de um mundo diferente. Mesmo de nossas casas, de onde quer que
estejamos, o estamos construindo.
Tetralogia da peste
[+ dois tempos, uma cidade], N-1 edições
disponível em: https://n-1edicoes.org/tetralogia-da-peste
Antonio Martinelli - Jornalista e gestor cultural.
Trabalhou na Revista Caros Amigos. Desde 2005, trabalha no SESC São Paulo. Foi
curador e coordenador do projeto "Brasil, país homenageado na Feira do
Livro de Frankfurt", em 2013, na Alemanha. Participou de juris e comissões
nas áreas de dramaturgia, bibliotecas e literatura.
Alex Dias - Poeta e gestor cultural. Autor
de “Lírica Abissal”, Ed. Urutau (poesia) e “Um céu todo estrela”, Ed. Patuá (poesia).
É Pós-Graduado em Gestão Cultural (Senac-SP); tem Especialização em Difusão
Cultural em Arquivos e Museus (USP Ribeirão Preto e ARQ-SP). É Doutorando em
Estudos Literários (UNESP Araraquara). Desde 2014, trabalha no SESC São Paulo.
[1] MARTINELLI, Antonio. Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma
cidade]. Série Pandemia. São Paulo: N-1 edições, junho de 2020. Disponível
em: https://n-1edicoes.org/tetralogia-da-peste.
Acesso: 07 de junho de 2020.
[2] Modernamente, o vocábulo refere-se
ao “conjunto de quatro obras, teatrais ou não, interligadas por um nexo
qualquer, ou toda a obra em quatro partes”. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São
Paulo: Cultrix, 2013.
[3] CAMPOS, Augusto. Viva vaia: poesia 1949-1979. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2014, p. 118.
[4] Referência a obra: JESUS, Carolina
Maria de. Quarto de despejo – diário de
uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 2014.
[5] “Ao contrário de deus, os mercados
é omnipresente neste mundo e não no mundo do além, e, ao contrário do vírus, é
uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros (a
esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida humana). [...] Se todos
estes seres invisíveis continuarem activos, a vida humana será em breve (se o
não é já) uma espécie em extinção. Está sujeita a uma ordem escatológica e
aproxima-se do fim”. SOUSA SANTOS, Boaventura de. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra/Portugal: Edições Almedina,
2020, p. 11.
[6] Referência a obra: SOARES, Elza. A mulher do fim do mundo. Direção
artística: Celso Sim e Romulo Fróes. São Paulo: Estúdio Red Bull Station, 2015,
(39:31), CD-Vinil.
[8] Ibid., 2020, p.5-6.
[9] Ibid., 2020, p.16.
[10] Ibid., 2020, p.17.
[11] Ibid., 2020, p.19.
[12] Ibid., 2020, p.20.
[13] Ibid., 2020, p.20.
[14] Ibid., 2020, p.28.
[15] Ibid., 2020, p. 31.
[16] Ibid., 2020, p. 31.
[17] Ibid., 2020, p.40.
[18] Ver o discurso de Charles Chaplin no
filme “O Grande Ditador”, de 1940.
[19] MARTINELLI, op.cit., p.49.