quarta-feira, 10 de junho de 2020

A pandemia em cinco atos poéticos: uma leitura de Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade], de Antonio Martinelli



por Alex Dias


Sugiro que o leitor comece a sua viagem por Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade][1], de Antonio Martinelli, ao som da tetralogia[2] de Wagner, Der Ring des Nibelungen, com o vinil achado no lixão e a vitrola restaurada através de sucatas ou qualquer outra fonte à disposição [“LUXO / LIXO”, Augusto de Campos][3]. Não que seja fundamental, complementar, essencial. Mas porque a obra é um labirinto de possíveis encontros, referências, geografias, num misto de lirismo e aspereza. A cidade é queda sobre os homens, o território de Joãos Josés, filhos de tantas Carolinas Marias[4], sonâmbulos atrás de suas máscaras sociais, despertos para a peste do vírus – que humaniza a fórceps o verbo – distanciando-os uns dos outros. Um drama crescente como o vazio das ruas ou o desejo de insubmissão às regras, da necessidade de contato. A nossa necessidade de afeto, entremeada por uma cidade devastada, vista da janela. Cidade invisível, cidades. Casas. Corpos. A humanidade perde importância nos discursos dos mercados. Homens, mulheres, crianças, invisíveis como “a trágica transparência do vírus[5]”.
Mas nem tudo é invisibilidade. Há os que se lançam sobre as dores e horrores de seu tempo, sobre a urgência da vida que pulsa latente nos punhos da arte.
As quatro obras que compõe essa Tetralogia da peste de Martinelli, “Brasilândia, Zona Norte”, “Calvário”, “Manaós” e “O Eco de Bérgamo”, são seguidas de um quinto ato, “Dois tempos, uma cidade”. Se coloco-as como atos, é mais por uma alusão ao drama humano, da vida como palco do espetáculo da vida, onde a morte também traz um vasto repertório de grande encenadora.
A voz que abre a trama, Brasilândia, primeiro ato, parece de “a mulher do fim do mundo”[6] embalando um jovem João José por caminhos de todos e de nenhuns. As trilhas possíveis são muitas, desligue súbito o “clássico”, coloque o samba de roda, o batuque dos terreiros, o funk, o rap, o pancadão. Esqueça tudo isso. Permita-se o silêncio.
[o tempo do desespero
é o agora!][7]

As batidas, mesmo silenciosas, serão tamanhas, como os assaltos do horror nos olhos das crianças descalças emanando luz além dos campos de terra e da violência da fome. A fome, essa peste agora remaquiada por novas máscaras. Fome de tudo, que faz o pobre abrir o peito ao medo e dar-se ao vírus num dos maiores banquetes de esquecidos pelo desgoverno, por tantos patrões. Território, Brasilândia, como tantos, cuja sina se reescreve por outras estatísticas:
[o medo segue sobrevoando
com os urubus
sobre o céu da Brasilândia!]
Agora, João
é maior o número de mortos,
mais peste,
menos bala.[8]

Paisagem transformada pela força que se sente e não se vê. Uma crença às avessas, do que é, mas que tantos teimam em não crer. Enquanto a morte não se mostra próxima (para alguns, isto é, dentro de casa), muitos olhos se cegam para as inúmeras covas.
Parece haver gente que não sente uma angustia que deveria tocar a todos. Cenas marcantes de vários povos. Povos nossos, mestiços. Peste que escancara as nossas desigualdades, os nossos racismos, nossa des-solidariedade. A peste chama-nos à revolta, aqui
Será preciso a Brasilândia
atear fogo no Brasil?[9]

ou em Guayaquil
a cidade que abandonou
seus doentes,
em cima das macas,
seus mortos,
em cima das mesas.
[carnes para urubus
nas praças públicas][10]

            Sobre a tragédia de Guayaquil descortina-se o segundo ato, o Calvário. A suspensão do tempo atravessa os fantasmas de Guayaquil, mórbidos transeuntes a procura de salvação em “nossa Gólgota / latino-americana”[11] em que
todos rezam em novena
pelo reconhecimento dos mortos.[12]

As horas sombrias do afastamento mais desumano. A desoladora vivência dos que ficam com lembranças fragmentadas das últimas horas, dos últimos encontros, dos últimos toques, palavras, carinhos. Há um desespero implodido nos peitos, nessa secura que o tempo arrasta como uma possível normalização social para o “novo agora”.
Com medo, os vivos de Guayaquil:
não tocam, não acariciam,
não beijam,
só temem o vírus vivo
nos corpos mortos de Guayaquil.[13]

            Nossa fragilidade exposta ao vírus, aos vermes, aos des-umanos inescrupulosos que fazem disso chacota, lucro, negociatas nos porões e salões “nobres”. Fome e Peste se entranham nas vidas que esses olhos de abutres desprezam. Ou, prezam à morte, seletiva, injuriosa. Fala-se de Guayaquil? Fala-se daqui, Brasil.  
            No momento em que nosso desgoverno busca burlar estatísticas, omitir a quantidade de mortos, varrê-los da nossa pandemia (i-men-sa-men-te sub-no-ti-fi-ca-da) para as contas de outras doenças, Manaós [Mãe dos Deuses], terceiro ato, revela o espírito vivo, o canto guerreiro, pelo sangue de nosso povo primeiro que habita e resiste no coração da floresta:
cidade incrustada na floresta,
ah, cidade e estado criados
pela destruição
deslocamento
de aldeamentos e vilas,
morre negro, tuxaua, caboclo,
xamã, branco, seringueiro,
pardo, morre índio.
cidade e país continuum de guerras
cidade país emburacados
no abre covas populacho.[14]

            Não nos esqueçamos, hoje as ruas estão tomadas de manifestantes. A urgência por justiça, por mudança, lança o povo às ruas, como a fome arrasta para elas os trabalhadores. Massa anônima lutando contra o racismo em todo o mundo, tecendo redes para além das redes sociais. Deitada na rua em frente ao arranha-céu de onde um anjo negro saltou para o colo de sua mãe. Tantas vidas negras em queda em nosso país e no mundo. E, de esquiva, tanta gente nas ruas. Moribundos espíritos vagando pela reabertura dos serviços e do comércio. Reabertura fora de hora, em tantos lugares de nosso imenso território, onde os números de mortos e infectados só crescem, me faz engrossar o grito: “Eu sonho uma nova / Cabanagem!”[15].
            Não há disfarce. Não adianta tentar sufocar o luto do povo, a diferença no trato. Ainda assim, mesmo com tantas famílias destruídas, lutamos, em busca de uma nova sociedade mais humanizada, mais solidária. Há de chegar a vez em que a Cultura e a Educação farão em nossa pátria a verdadeira Revolução. O espelho só diz o que envelhece em nós. Cultura e Educação, o que nos rejuvenesce e fortalece. Porém, os tempos são de sombras. Enquanto estivermos nas mãos destes cujos projetos são projéteis mirando o coração da nação, disfarçados de messias, com suas palavras vazias de compaixão, a pandemia passa a ser quase inofensiva. Quem viu o valor da fatura que já estamos rachando? Quem sabe o prazo desse crediário em que penhoramos a nossa chance de futuro? De um futuro que de fato constrói uma nação, uma identidade, um povo, uma Cabanagem.  
            Por isso
Narremos,
cantemos essa história
Contemos os nossos mortos,
os mortos de Manaós, um a um.
Em números e nomes, em etnias.[16]

Contemos todos os mortos e creditemos as suas mortes sobre os ombros dos que agem com descaso, aliados da peste. Não devemos definhar por esta subclasse de humanos que não zela por seu povo. Nosso povo, tão oprimido, que replica muitas vezes um discurso sem sentido, contra si mesmo. Quem lhe tirou a chance de um livro, de uma visita ao parque, o tempo de um filme, de um espetáculo, do lazer, da arte, do esporte? Quem lhe tirou a chance de, em museus, saber de outras culturas? Da sua própria, de seus antepassados? Quem impregnou nosso povo de suor, cansaço, e fez seu corpo [escravo] de horas incontáveis de trabalho? Quem descansa protegido [ócio pago] enquanto a massa alimenta de produtos as prateleiras dos mercados? Nosso povo não sabe de ócio. Sabe de ossos.
Antes do vírus, os museus, em sua grande maioria, já eram pouco visitados. A peste apenas cerrou suas portas, como tantas outras. Cidades onde a arte e a cultura de seus e outros povos eram mais frequentadas, também foram desoladas. Claro que sempre há os espaços que fogem à regra, incluindo entre eles, alguns que se incendiaram por descuido e descaso, e seguem fechados.
Bérgamo, quarto ato. Quantos brasileiros a conheceram? Quantos souberam de sua existência pela cena nos noticiários de um comboio de caminhões do exército levando os corpos mortos de seus moradores para serem incinerados em outras cidades. A peste ainda não havia batido tão fortemente em nosso país. Bérgamo, Itália. Espanha. Outros mais. Brasil. Hoje, com mui+to + mais + mor+tos. E tantos ainda, que nem se sabem, condenados. Alguns pedem soldados em nossas ruas, intervenção a nossa surrada liberdade. Lembremos de Bérgamo, estamos nos aproximando deste estado, onde soldados em seus carros são necessários para levar os mortos. Exagero! Bradarão alguns, uniformizados. Não nos esqueçamos, nosso vasto território tem realidades e horizontes que nossas telas (televisões, computadores, celulares) não alcançam. Brasis. Onde a salvação para imensa maioria da população ainda passa pela necessidade de isolamento e pelo SUS (Sistema Único de Sáude), que sobrevive público, mas sucateado nas desigualdades dos Brasis. Necessário. O coro na rua que ainda respira, deve entoar esse canto de urgência e em defesa: “SUS!”.
Não nos esqueçamos
[hoje,
ouço a marcha fúnebre]
nem todo aquele jornal
– “Eco de Bérgamo” –
depois de folheado
à exaustão
– surrado batido molhado
seco deformado enrugado –
seria suficiente
pra embrulhar meu coração.[17]

            Mas nem tudo, nesse mar de incertezas, é trágico. A reinvenção do humano é um drama necessário. Saímos do chão de nossas toscas certezas. Achávamos ver os próximos. Agora, distantes, de quantos lembramos? Achávamos olharmo-nos. Quantos agora sustentam a convivência consigo mesmos? Mas de nossas janelas, o céu ficou mais límpido. Em parte, porque antes não o olhávamos, em parte porque o deixamos de poluir, com a breve estagnação que demos as nossas máquinas. “Não somos máquinas”[18].
            Dois tempos, uma cidade. Último ato.
Se preciso,
dê o seu coração,
divida com os de fora,
e comungue
nas mãos da esperança.[19]

Não sem sofrimento, temos a chance de, vencida essa peste, levarmos a vida ao encontro de um mundo diferente. Mesmo de nossas casas, de onde quer que estejamos, o estamos construindo.






Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade], N-1 edições 



















Antonio Martinelli - Jornalista e gestor cultural. Trabalhou na Revista Caros Amigos. Desde 2005, trabalha no SESC São Paulo. Foi curador e coordenador do projeto "Brasil, país homenageado na Feira do Livro de Frankfurt", em 2013, na Alemanha. Participou de juris e comissões nas áreas de dramaturgia, bibliotecas e literatura.













Alex Dias - Poeta e gestor cultural. Autor de “Lírica Abissal”, Ed. Urutau (poesia) e “Um céu todo estrela”, Ed. Patuá (poesia). É Pós-Graduado em Gestão Cultural (Senac-SP); tem Especialização em Difusão Cultural em Arquivos e Museus (USP Ribeirão Preto e ARQ-SP). É Doutorando em Estudos Literários (UNESP Araraquara). Desde 2014, trabalha no SESC São Paulo.



[1] MARTINELLI, Antonio. Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade]. Série Pandemia. São Paulo: N-1 edições, junho de 2020. Disponível em: https://n-1edicoes.org/tetralogia-da-peste. Acesso: 07 de junho de 2020.
[2] Modernamente, o vocábulo refere-se ao “conjunto de quatro obras, teatrais ou não, interligadas por um nexo qualquer, ou toda a obra em quatro partes”. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 2013.
[3] CAMPOS, Augusto. Viva vaia: poesia 1949-1979. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, p. 118.
[4] Referência a obra: JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 2014.
[5] “Ao contrário de deus, os mercados é omnipresente neste mundo e não no mundo do além, e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida humana). [...] Se todos estes seres invisíveis continuarem activos, a vida humana será em breve (se o não é já) uma espécie em extinção. Está sujeita a uma ordem escatológica e aproxima-se do fim”. SOUSA SANTOS, Boaventura de. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra/Portugal: Edições Almedina, 2020, p. 11.
[6] Referência a obra: SOARES, Elza. A mulher do fim do mundo. Direção artística: Celso Sim e Romulo Fróes. São Paulo: Estúdio Red Bull Station, 2015, (39:31), CD-Vinil.
[7] MARTINELLI, op.cit., p.9.
[8] Ibid., 2020, p.5-6.
[9] Ibid., 2020, p.16.
[10] Ibid., 2020, p.17.
[11] Ibid., 2020, p.19.
[12] Ibid., 2020, p.20.
[13] Ibid., 2020, p.20.
[14] Ibid., 2020, p.28.
[15] Ibid., 2020, p. 31.
[16] Ibid., 2020, p. 31.
[17] Ibid., 2020, p.40.
[18] Ver o discurso de Charles Chaplin no filme “O Grande Ditador”, de 1940.
[19] MARTINELLI, op.cit., p.49.